1649-014

Aqui suplantam-se os intelectuais...

sexta-feira, abril 06, 2007

Estrela Cadente

No cair do momento oculto, o sol ocupa lentamente o seu lugar no topo do horizonte. À medida que a luz vai penetrando o meu olhar, obrigando-me a viver a realidade que nego, procuro encontrar um recanto onde possa suportar a luz que me fustiga. Mas a mais crua das realidades é que tal conforto não existe, nesta ilha plantada no meio do nada. O tempo que passou, desde que cheguei a este maldito lugar, já me deu a possibilidade de explorar cada centímetro quadrado deste minúsculo ilhéu que me aprisiona. Dias passei a circundar as poucas dezenas de metros de areia que o delimitam.Tão pequeno é, que com facilidade, o olhar o atravessa de uma ponta a outra, por entre as esfarrapadas árvores que pontificam numa pequena elevação no centro. Enquanto desperto para mais um dia em que abandonado estou aos meus pensamentos, amaldiçoo o ébrio deus que me colocou neste fim de mundo. Deambulo pelo 84º dia consecutivo , pontapeando mais uma concha à minha passagem, e enchendo vitoriosamente a minha mão de areia… O dia parece passar-se como tantos outros, em que as memórias da vida deixada para trás, pelo infortúnio do destino que não existe, são guia para os mais dissonantes estados de espírito. Lembro-me do carinho de um pai extremoso, de um beijo apaixonado, de uma mulher que me transformou, de um amor que me deixou, de um coração que quebrei, de mil e uma sensações fortes que experimentei…mas essencialmente de tudo o que ainda queria ser e viver. Como se o passado, por muito realizador ou destruidor que fosse, me embuisse de uma força extraordinária para ser mais e melhor. No momento em que de olhos fechados aquecia o meu coração com um amor no meu peito aninhado, um leve bater no ombro perturba o meu êxtase. Ainda embriagado pela solidão inevitável daquele momento, viro-me descomplexadamente e deparo-me com uma figura aparentemente humana que com um sorriso me oferece uma toranja estendida na palma da sua mão. Por minutos permaneci estático sem nada dizer ou sentir, a realidade era tão estranha que não a aceitava. Como era possível que naquele pedaço de chão, afastado de toda a humanidade um par de milhão de milhas,que já prospecionara até a exaustão em busca de qualquer tipo de vida animal,pontificasse agora aquele ser. Num gesto instintivo dou um salto de felicidade e agradeço pouco coerentemente, aos céus, a fortuna daquele encontro. Com todo o rebuliço emocional, começo a relatar fervorosamente toda a minha aventura até aquele local, todas as peripécias, dores e angustias vividas naquela ilha, durante horas e horas…
Aquele quente dia de Primavera, em que num veleiro decidido, me lancei numa busca solitária. Ergui-me através das velas e deixei o vento levar-me, olhando de relance para a baía, onde desejava ter apenas as memórias a acenarem-me ao ritmo leve das asas de uma gaivota… Ao ver a silhueta da terra firme cada vez mais definida e longínqua, interrogo-me se partira realmente… Passada a barra, o vento que até então de feição estivera, apazigua-se deixando-me imóvel e indefeso perante a beleza do que abandonava, à medida que esse encantamento ganhava maiores contornos com o cair da noite e o preenchimento de brilho que o luar intenso e as estrelas exacerbavam. Tinha como companhia um velho milhafre, que abandonara a desconfiança natural do desconhecido, quando dera comigo deitado no convés absorvido pelo céu negro repleto de luz. Horas se passaram, até que acordei daquele sonho infértil de ver uma estrela cadente preencher os meus sonhos, retomando o leme, e seguindo o rumo, agora auxiliado pelo motor. Para surpresa minha, o milhafre, não seguira o seu errante destino, permanecia na proa, virtualmente indicando a rota. Já em mar alto, enquanto pescava um incerto almoço, entretinha-me a ver aquele velho milhafre a esvoaçar do alto da sua altivez, as suas cores castanho e branco, num ritmo pachorrento. Tanto tempo passava infrutiferamente em busca de alimento que acabava por se aninhar no convém. No entanto, e adensando-se a fome com o trespassar dos dias em que nada colhia, certo dia em que o calor era intenso e o suor já transbordava a minha camisa, deu um passo para o desconhecido, poisando delicadamente no meu ombro, aguardando por um contributo da minha pescaria. Admirado por aquela temerária conduta, e não me escapando o paralelismo cómico da circunstância com o estereótipo de um qualquer afamado pirata, ri-me criançalmente! Por consequência assustei os peixes que caminhavam para um fim tão comum nos dias de hoje, onde um ardil, é ferramenta essencial, na pescaria cruel do dia a dia. Passei o resto desse dia a admirar o horizonte com o meu improvável companheiro. Mas a certo ponto, já não era o horizonte que prendia o meu pensamento, mas a inveja que aquele ser voador, que pontificava no meu ombro me produzia. Tão livre!Para ir onde o olhar alcança, sem nada que o aprisione ou prenda à vida que deixou, pelas asas, mas principalmente pela liberdade inerente à inconsciência de apenas existir... Aquela minha viagem que era o culminar de uma vida, em busca de novas asas, para ele não era mais que o dia a dia de vôos eternos para lá do horizonte… Assim e num gesto repentino, rumei directamente para onde o sol se afundava no mar…Enquanto a água do mar me ia preenchendo o corpo e salgando a alma, o milhafre retomou o seu rumo, voando ainda mais para lá do horizonte prometido, abandonando-me à minha sorte de mortal pensante…
Quando a consciência me invadiu, num salto despertei, tomando aquela viagem como um irreal sonho, mas ao sentir as costas cobertas de uma areia fina e ouvindo o bater das ondas, deparei comigo numa pequena ilha, de onde o olhar nada mais alcançava a não ser o belo ondular azul do mar. Sinais do barco não havia, nem mesmo de qualquer destroço que tivesse dado a margem, na areia fervilhante apenas passeavam múltiplos caranguejos. Não seria porém, o seu jeito peculiar de alcançar o seu destino, tão paradoxalmente similar ao humano modo de ver a vida, que me inibiria de desfrutar de um revitalizante jantar. E assim foi, providenciando não só o apaziguamento do estômago, como o conforto mínimo para a noite, improvisando um recanto. Os dias passaram-se com uma tranquilidade surpreendente, pois a perspectiva de ali ficar não era tão aterradora como se pressupunha no abstracto. Não pelo constante receio humano do impiedoso semelhante, mas porque em mim habitava a mais inabilitante das dúvidas… No entanto e à medida que ia ficando cada mais mais entregue a mim mesmo a intranquilidade do passar sucessivo dos dias sem nada por que lutar invade-me ferozmente, através de uma alma por preencher.
Com todo aquele entusiasmo, só quando o sol se escondia, desenhando a silhueta do meu interlocutor, reparo que as minhas palavras em momento algum motivaram, durante todo aquele tempo, um movimento, uma expressão! Permanecia imóvel com o braço estendido a oferecer-me a toranja!Deixo-me cair para trás, amparado pela areia, e vejo como é esguia aquela figura, de olhos e face irrealmente grandes, tão díspar da comum forma humana, que começo a perguntar-me que ser é aquele a quem dirigira o relato de uma vida…
Fixei-me de forma hipnótica durante longos momentos, ao seu olhar negro e brilhante, que com o cair da noite ganhara outra beleza, e a sua mensagem inscreveu-se na minha mente de forma quase tão instantânea como brutal, circundando-me de forma cada vez mais próxima, cada vez mais e mais,já só via diante de mim a inquietude da verdade tão simples como perturbadora através do multiplicar do poder dos olhos negros que me invadiam…O meu ritmo cardíaco dispara, a minha visão começa a perder-se, caindo prostrado no chão. Lanço o meu último olhar ao céu, que por um último momento me encheu de luz, através da estrela cadente que finalmente passou, e enfim, a vida recomeçou…

2 Comentários:

Blogger Ricardo JM disse...

espero sériamente que estejas a completar a historia em casa e que este texto seja so uma "amostra grátis" porque quero ler mais!!

14:20  
Blogger Unknown disse...

muito bom mesmo! grande escrita ze! abraço

02:13  

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